Irã não é obrigado a ceder caixa-preta de Boeing que caiu, mas EUA têm direito a atuar em investigação

A investigação sobre as causas da queda de um Boeing 737 no Irã deve complicar ainda mais a crise diplomática envolvendo o regime iraniano e os Estados Unidos, visto que Washington tem o direito de participar da apuração por ser o avião de origem americana.

Ao menos, é isso o que estipula a Icao (Organização da Aviação Civil Internacional), agência da ONU que rege as práticas e padrões de segurança da aviação global.

No caso da queda do Boeing 737-800 em Teerã nesta quarta-feira (8), que matou 176 pessoas, têm direito a participar da apuração das causas do acidente os Estados Unidos —país onde o avião foi desenhado e produzido— e a Ucrânia, país de registro da aeronave e sede do operador, a companhia Ukraine International Airlines.

As normas para investigação de acidentes aéreos estão descritas no Anexo 13 do documento que originou a Icao, a Convenção de Chicago, assinada em 1944.

“O Estado de Registro, o Estado do Operador, o Estado do Design e o Estado da Produção devem cada um ter o direito de indicar um representante para participar da investigação”, afirma o texto.

Como Estado de Ocorrência, isto é, o local onde aconteceu o acidente, o Irã tem o direito de coordenar a investigação, inclusive decidindo o destino das caixas-pretas da aeronave. Caso o Irã avalie não ter a tecnologia necessária para a leitura dos dados, pode pedir auxílio a outro país.

Foi o que fizeram as autoridades da Etiópia no ano passado, que enviaram para a França as caixas-pretas do Boeing 737 Max da Ethiopian Airlines que caiu logo após a decolagem, em março, matando 157 pessoas.

Por isso, não deve causar surpresa a declaração do diretor da autoridade de aviação iraniana, Ali Abedzadeh, que afirmou nesta quarta que o Irã não vai entregar as caixas-pretas à Boeing ou aos Estados Unidos. As normas internacionais não o obrigam a isso.

A regulação prevê, no entanto, o acesso à investigação de outras partes interessadas.

“Em geral há grande cooperação entre os países quando se trata de investigação de acidente aeronáutico, até porque o objetivo dessa investigação não é apontar culpados, mas sim prevenir novos acidentes”, afirmou Ricardo Fenelon, ex-diretor da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) e advogado especialista em aviação.

“Apesar de não ser comum, está previsto na Convenção de Chicago que um país pode sofrer penalidades caso descumpra as recomendações da Icao, órgão que faz parte da ONU e que também tem a competência de decidir conflitos entre os Estados no âmbito da aviação civil internacional.”

Essa competência, no entanto, vem prejudicada nos últimos tempos. O caso mais emblemático é o do Qatar, que se arrasta há mais de dois anos no órgão sem a previsão de um desfecho.

Em junho de 2017, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, o Egito e o Bahrein cortaram relações com o Qatar e impuseram ao país um embargo que inclui a proibição de voos qataris sobrevoarem seu espaço aéreo.

A medida se mostrou um obstáculo para a Qatar Airways, uma das maiores companhias aéreas do mundo, que se viu obrigada a contornar esses países, gastando mais combustível e ampliando o tempo de voo em algumas rotas.

O Qatar levou a questão à Icao, enquanto o grupo liderado pelos sauditas tenta mover a jurisdição do caso para a Corte Internacional de Justiça, em Haia. Desde então, o embargo permanece.

A participação dos Estados Unidos na investigação da queda do Boeing em Teerã, no entanto, pode esbarrar em um obstáculo criado pelos próprios americanos: as sanções econômicas contra o Irã que o presidente Donald Trump reinstituiu em 2018, após a saída dos EUA do acordo nuclear firmado em 2015.

Empresas americanas, entre elas a Boeing, são proibidas de fazer negócios com o Irã, e isso incluiria a participação de um representante do país na apuração das causas do acidente aéreo.

Em relação ao direito iraniano de liderar a investigação, há jurisprudência para o caso de o país onde ocorreu o acidente ceder a outro esse direito.

Foi o que ocorreu em 2014, com a apuração da queda do voo MH17 da Malaysia Airlines, derrubado por um míssil enquanto sobrevoava a Ucrânia, em meio à guerra civil que opunha ucranianos e separatistas pró-Rússia.

A pressão da comunidade internacional à época, inclusive do Conselho de Segurança da ONU, levou o governo ucraniano a ceder à Holanda a liderança na investigação do acidente que matou 298 pessoas, a maioria holandeses.

Além desses dois países, participaram da investigação Malásia, Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Rússia.

Com mais de 5.100 unidades entregues, o Boeing 737-800 é atualmente o modelo de avião mais usado no mundo, superando seu rival direto, o Airbus A320ceo.

Na batalha das novas gerações, no entanto, a Airbus vem levando a melhor, com 825 entregas do A320neo frente a 387 do 737 Max, que está impedido de voar desde março de 2019 após dois acidentes e teve sua produção suspensa em dezembro.

A crise do Max foi responsável pelo pior ano da história da Boeing, que viu a Airbus superar pela primeira vez o número de encomendas considerando todas as variantes da família A320: 15.193 ante 15.136 de todas as gerações do 737.